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Deixa a ruta me levar

Patagônia sem pressa e de carro: eles conheceram alguns dos lugares mais bonitos do extremo do continente

Por Andrés Bruzzone
Atualizado em 16 dez 2016, 09h17 - Publicado em 7 set 2011, 18h00

“A região da Patagônia ocupa quase toda a porção sul da Argentina continental. Com uma área de 673 mil quilômetros quadrados, constitui vasta área de estepe e deserto delimitada pelos Andes Patagônicos no oeste, o Rio Colorado no norte, o Oceano Atlântico no leste e o Estreito de Magalhães no sul.” Dirijo em direção ao sul, sob o céu imenso, um céu maior que qualquer outro. Horas na estrada de paisagens sempre diferentes – mas quando mudam? -, sem notícia de outros seres vivos fora alguns guanacos que correm, alarmados pelo barulho do motor. Um carro velho vem, lá na frente, distante; lento, meio degringolado, parece que a qualquer momento vai sair da estrada para ficar, abandonado, naquele deserto.

Engraçado: a enciclopédia fala em deserto, nós falamos em deserto, mas, desde que chegamos,  não deixamos de descobrir, a cada dia, espécies animais diferentes. Foram primeiro os loros barranqueros (papagaios que moram em tocas as falésias), cavalos selvagens, pinguins, ñandúes  ou choicos (pequenos avestruzes), lobos-marinhos, toninhas, tartarugas, lebres… Pois é, a Patagônia é deserto, mas um deserto bem povoado e variado. Sem chance de monotonia por aqui.

Partimos de Mar del Plata, cidade litorânea que concentra, no verão, quase 1 milhão de turistas. Suas atrações são quase todas barulhentas: cassino, praias lotadas, discotecas, restaurantes e teatros com fila na porta. Contraste forte com essas planícies que permitem ouvir o som do vento, que convidam a perder o olhar para além do além e deixar os pensamentos voarem. Como se a viagem fosse muito mais para dentro que para lá. E “lá” é o sul, o extremo do continente, afinando-se e mergulhando nas profundezas de um Atlântico que logo mais irá se encontrar com o Pacífico e o Antártico. Nós fugimos do barulho de todas as cidades, do trânsito e da pressa. Pela frente, uns 7 mil quilômetros não muito definidos: vamos desenhando a estrada à medida que a curiosidade, as vontades e os caminhos forem nos levando.

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Somos uma equipe de aventureiros pouco convencionais. Não temos 4×4 nem roupas cáqui: um casal e duas pré-adolescentes num Peugeot 206. “Primeiro dia. Partimos às 10 da manhã rumo a Viedma. A viagem foi chata, mas escutamos música. Paramos para almoçar num, digamos, pequeno bosque. O vento fazia voar tudo: guardanapos, toalha… O hotel que havíamos reservado por telefone era ruim, e por isso fomos ver outros. Acabamos num que também não era grande coisa.” O diário de bordo das meninas dá conta do trajeto que nos leva a entrar em território ofi cialmente patagônico. Percorremos 670 quilômetros praticamente sem parar – apenas para almoçar na beira da estrada, embaixo de umas árvores que elas chamaram, com ironia, de bosque.

As estradas pampeanas são monocórdicas: retas que não acabam, planícies cuja única variação está no tipo de cultivo. São estradas ruins (porém não terríveis), lotadas de caminhões e carros  de turistas apressados em chegar ao destino ainda que isso possa lhes custar a vida. Fico feliz quando atravessamos o limite formal, o Rio Colorado, e ainda mais ao chegar à primeira cidade patagônica de nosso percurso, Viedma, porto fluvial que acompanha o temperamental Rio Negro (até na primavera, quando a neve começa a derreter na  cordilheira, seu curso deixa de ser amável e se faz furioso, carrega árvores, animais, às vezes casas).

Há duas estradas para seguir a partir dali, e pegamos a mais longa, a pior, a número 61. Mas não por acaso: é a que beira o Golfo de San Matías, passa pelas primeiras colônias de lobos-marinhos e nos leva a descobrir os loros barranqueros. Milhares deles, de penas coloridas, morando de frente para o Atlântico Sul, fofocando sobre nossa cabeça. O mar já combina o azul profundo com verdes claros e intensos e é muito frio – o que não impede que as meninas pulem na primeira oportunidade para se surpreender com a visibilidade embaixo d’água. Foi por aqui que andou Charles Darwin, que, a caminho de elaborar uma teoria sobre a evolução das espécies, ancorou com o Beagle e enfrentou as planícies a cavalo, coletando animais, pedras e folhas, sob o olhar de gauchos desconfiados. De fato, não é com pretensão de originalidadeque se diz que a Patagônia é um museu ao ar livre: há bosques petrificados (alguns podem ser visitados), campos de fósseis e sítios sendo explorados por cientistas até hoje.

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Descemos pela Ruta 3, entrando nos caminhos que nos conduzem a uma colônia de pássaros, a um reduto de lobos-marinhos ou a algumadas poucas cidades. Não é época de baleias (começa em maio e acaba em novembro), mas mesmo assim Puerto Madryn encanta. Visitamos o Ecocentro, um agradabilíssimo centro de divulgação de conhecimento sobre o mar. Para dar uma volta pelo Golfo Nuevo, alugamos caiaques. As águas são das mais claras (e frias!) do planeta. Ao mergulho e às paisagens soma-se uma fauna rica: aves na Isla de los Pájaros, pinguins, lobos-marinhos, baleias e orcas, ovelhas e guanacos. O guanaco, que normalmente associamos à cordilheira mas que é comum nessas áreas costeiras, é parente do lhama, da mesma família do camelo. Um deles cuspiu no cabelo de uma das integrantes de nossa trupe. Todos rimos, menos ela. Visitamos ainda Trelew, que não é bonita porém merece uma parada, mesmo  que seja apenas para visitar o Museu Paleontológico Egidio Feruglio. Também demos um pulo na vizinha Gaiman, primeiro assentamento galês na região, onde é possível beber um excelente chá com scones. À beira do Rio Chubut há plantações de frutas; paramos para conversar com os produtores e saímos carregando uma sacola cheia das mais gostosas cerejas.

Pela Nacional 1, chegamos a Punta Tombo e à Reserva Natural Cabo dos Bahías, onde é possível andar entre milhares de pinguins. É uma ruta de ripio, isto é, uma estrada de pedrinhas redondas e soltas de tamanho irregular. O primeiro grande perigo nesse tipo de estrada é que em muitos trechos ela está boa, lisa, e dá para acelerar sem problema… Mas, numa curva ou tocando de leve o freio, os riscos de acidente são grandes. Paramos várias vezes: para andar na superfície branca de uma salina, para colher conchas numa praia, para visitar um velho cemitério com vista para o mar, para brincar com um cordeirinho… As enormes  estâncias ali são produtoras de ovelhas (e o cordero patagónico assado é um prato delicioso: quase sem gordura, a carne desses bichos criados em condições climáticas desfavoráveis é muito diferente da de seus parentes criados em confortáveis estábulos e alimentados com ração).

Antes de chegar ao extremo sul do continente, paramos em Comodoro Rivadavia, Puerto Deseado e San Julián, cenário de uma perda irreparável: uma sacola com nossos pratos, copos e talheres,  que caiu do porta-malas mal fechado. Para evitar outros acidentes, seguimos os códigos do território: encher o tanque de gasolina (muito barata: há  subvenção estatal a toda a região) sempre que possível, cumprimentar os motoristas, oferecer ajuda quando necessário, reduzir a velocidade para evitar dar ou receber uma pedrada. Conversamos com as pessoas nos postos, oferecemos ou recebemos um mate – esse hábito bárbaro que aproxima argentinos de gaúchos e uruguaios -, o chimarrão que passa de mão em mão e, pior, de boca em boca, cachimbo da paz que desafia as normas de profilaxia. Estamos já na Patagônia profunda, muito diferente daquela mais afável dos turistas, da aventura confortável. Aqui já é vida real. Um habitante por quilômetro quadrado, em média. O vento é duro, dos mais duros do planeta. 

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Seguindo novamente para sul, é hora de tomar uma decisão: atravessar ou não para a Terra do Fogo. A parte mais jovem da equipe está ansiosa por conhecer os glaciares. Ushuaia ficará para a próxima. Assim, chegando a Guer Aike, nosso rumo muda e começamos a apontar para o noroeste. A estrada é muito boa e fica excelente quando chegamos a El Calafate. Mas tomamos um choque. Voltamos à civilização, e a uma forma particular dela. Muita, muita gente se aperta nas ruas e nas calçadas. Os 4×4 reluzem, as roupas das pessoas são coloridas, e muitos carregam sacolas com compras. Sabíamos que a cidade, que até pouco tempo atrás não existia, vivera uma febre turística, em grande parte impulsionada pelo primeiro-casal; Néstor e Cristina Kirchner são da província, adoram o local e têm ali uma casa. Até agora, nunca tínhamos tido dificuldade em achar hotel; bastou sempre perguntar num posto de gasolina, andar pelas ruas da cidade ou do vilarejo, escolhendo a melhor opção ou, simplesmente, a que tinha. Já em El Calafate, precisamos recorrer à Oficina de Turismo, que faz o trabalho direitinho. Depois de uma meia hora, fomos endereçados a um hotel médio: não muito barato, não muito caro; não muito bom, não muito ruim. Meio desapontados, tiramos o jantar para planejar nossa visita ao Perito Moreno, o gigante  glaciar de 30 quilômetros de comprimento e 30 de largura, que avança em direção ao Lago Argentino com uma altura de até 70 metros acima da água.

Até lá se chega de carro e a pé ou de barco. É possível se aproximar bastante pelas passarelas, e a vista é boa, mas a sensação de flutuar ao lado daquela parede enorme de gelo é incomparável. Os bosques e as montanhas ao redor, os enormes pedaços de gelo que se desprendem e caem com barulho, os pequenos icebergs de formas caprichosas… Há gente, há multidão, há barulho, mas nada disso consegue apagar o grandioso, o sublime. Feliz com a experiência, a equipe dos aventureiros do Peugeot 206 quer mais. Sonhamos com uma caminhada pelo gelo, mas a dica de um guia amigo nos orienta para o Glaciar Viedma, vizinho de um vilarejo ainda incipiente, o Chaltén.

A chegada nos entusiasma: há apenas algumas casas encravadas num vale que se abre num leque de trilhas para as montanhas. Nós, claro, realizamos o sonho de andar pelo glaciar. Cruzar o lago, desembarcar na pedra lisa, calçar os crampões e andar por aquela superfície diferente de tudo, isso é forte. Mas o que impressiona, e que resulta acachapante, é a desproporção das forças, dos tamanhos, dos tempos. Como montar nas costas de um gigante que respira, lento e poderoso.

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Antes de acabar a viagem, temos um encontro com a Ruta 40, conhecida como a Rota 66 argentina.Em 5 mil quilômetros de extensão, vai desde o extremo sul do país até o limite norte, na fronteira com a Bolívia. Só a metade tem asfalto, e muitos trechos são penosos. Rodamos mais de 750 quilômetros, sob um sol duro, que reverbera na pedrapelada que nos rodeia, quase sem vegetação. Uma  pedrinha bateu e quebrou o filtro de gasolina, acidente superado graças a um engenheiro descendente de galeses que vinha em sentido oposto numa picape (o único que atravessou nosso caminho em horas) e nos rebocou por mais de 60 quilômetros.

Depois de 16 horas, fez-se noite na estrada, e a luz branca da lua cheia dava um aspecto de irrealidade ao deserto enquanto rodávamos, sozinhos, no mundo. Cansados, queríamos só uma cama limpa, mas tivemos mais que isso na Estancia Los Toldos, parte de uma rede de fazendas abertas ao turismo, a associação Estancias de Santa Cruz. O gran finale, antes de voltar sem interrupções a Mar del Plata, seria ali perto, no sítio arqueológico Cueva de  las Manos. Todo e qualquer cansaço e todo o incômodo da subida da trilha íngreme desaparecem diante das pinturas, dos desenhos de mãos e outros registros feitos por indígenas pelo menos 8 mil anos atrás. Os paredões chegam a ter 200 metros de altura. Um oásis de vida e verde, de frescor, interrompe a meseta árida que se perde para além do horizonte. Descemos para tomar banho no rio, que  corria devagar, fresco, transparente, no meio de um mato mido, fechado, quase tropical – por tudo improvável nessas latitudes. Como quase todo o resto.

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