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Manaus: asfalto selvagem

Em Manaus, os rios, os hotéis e um centro histórico que pouco a pouco vai recuperando o antigo brilho. A floresta e seus mitos estão por todos os lados

Por Nádia Lapa
Atualizado em 14 jul 2021, 14h05 - Publicado em 20 fev 2012, 19h32

Lucas, de 4 anos, queria saber se íamos nadar no mar. Estávamos sobre uma balsa que cruzava o Rio Negro. Impressionado com a imensidão das águas escuras, ele achou que navegava no oceano. Isso porque ali o Negro tem 4 quilômetros entre as margens, apenas um sexto da distância na região de Anavilhanas. Mas se impressionar com o volume do Negro não é prerrogativa apenas das crianças. Durante o indefectível – e imperdível – passeio de barco até o encontro das águas dos rios Negro e Solimões, que formam o Amazonas, os turistas que visitam Manaus soltam, meio sem perceber, interjeições de admiração. Muita gente conhece o fenômeno por fotos, pelo Amaral Netto e por ouvir dizer. Mas ver in loco o barrento Solimões guerrear por espaço com o Negro é um deslumbre. Como Omar e Yaqub, os gêmeos de Dois Irmãos, premiado romance do escritor amazonense Milton Hatoum, os rios não se entendem, não se misturam. Parece lenda amazônica, só mais uma das muitas que existem. Pelas diferenças de velocidade, densidade e temperatura, as águas dos dois rios correm lado a lado por 6 quilômetros, até virarem o Amazonas, o maior do mundo.

Meu barco para em cima da divisão entre os rios, uma linha visível, bem menos imaginária que a do Equador, que passa pertinho, ao norte. O mineiro Samuel Queiroga usa o adjetivo repetido por quase todas as 70 pessoas a bordo: ‘‘Fantástico”.

O encontro das águas é o programa clássico de Manaus, cidade que muitos brasileiros ignoram por achar longe e cara demais. O fluxo de visitantes evolui, lenta e consistentemente, a uma taxa de 13% ao ano. Cresce o turismo, e cresce a cidade. Manaus tem cerca de 1,7 milhão de habitantes, a oitava população do Brasil, à frente de capitais como Recife, Belém e Porto Alegre. Dos cerca de 20 hotéis listados no GUIA BRASIL 2010, metade foi inaugurada nos últimos dez anos. Caso do Mercure e do Park Suites, com sua linda piscina de borda infinita para o Rio Negro. Um distrito gastronômico surgiu, recentemente também, na região do Vieiralves.

Mas é inevitável voltar aos rios que envolvem a capital amazônica. O encantamento com o encontro das águas acontece há tempos. Nos palácios Rio Negro e da Justiça, ambos do começo do século 20, época do ciclo da borracha e do esplendor de Manaus, o piso de alguns cômodos é feito de ripas de madeira de cores diferentes, intercaladas, que remetem à confluência dos rios. As pedras portuguesas que recobrem a Praça de São Sebastião, bem na frente do Teatro Amazonas, são como ondas pretas e brancas. E, dentro do teatro, a citação é mais explícita: o pano de boca, com 15 metros de altura, traz uma pintura do encontro das águas.

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Imponente, o Amazonas desperta a curiosidade do passante. O escritor Milton Hatoum disse à VT que leitores estrangeiros de seus livros lhe fazem perguntas sobre o lugar. “Para eles, é outro mito. Ninguém entende um teatro daquele tamanho no meio da floresta.”

Poderia ser mais uma lenda, puro Fitzcarraldo (o filme de Werner Herzog cujo delirante protagonista sonha em montar um auditório de ópera no meio do Amazonas) urbano, mas o teatro está lá, sólido e ativo. Inaugurado em 1896, era o símbolo máximo de uma cidade que se pretendia a Paris dos Trópicos (e, em Manaus, trópico tem um sentido bastante estrito). De qualquer lugar da plateia, em formato de lira e de acústica perfeita, ao olhar para as pinturas no teto, você tem a impressão de estar embaixo da Torre Eiffel. Ouro, cristais de Veneza e mármore de Carrara foram usados na decoração. O salão nobre, onde hoje só se entra de pantufas para melhor conservação do piso de madeira, feito em marchetaria, é outro destaque. E a cúpula, com 36 mil peças de cerâmica nas cores da bandeira brasileira, faz-nos lembrar em que país vivemos.

Há espetáculos regulares e, em maio, os tempos áureos são revividos no Festival Internacional de Ópera. Mas nem sempre foi assim. A primeira restauração só ocorreu na década de 1970. Até a segunda, em 1990, o prédio padeceu com as constantes chuvas equatoriais.

A bem-sucedida experiência com o teatro deu a largada para a revitalização do centro histórico. Algumas ruas em seu entorno foram fechadas aos veículos e tiveram suas casas centenárias recuperadas. Surgiu ali o Largo de São Sebastião, batizado com esse nome em razão da igreja de uma torre só ali instalada (mais uma lenda: dizem que a outra torre afundou ao vir da Europa). O largo tem ares de pracinha do interior, com vendedores de algodão-doce, bexigas e tacacá, o muito amazônico caldo à base de tucupi, feito de raiz da mandioca e incrementado com camarão seco e jambu, folha que deixa a língua dormente.

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Em março de 2012 foram inaugurados o Palácio Rio Branco e o Museu Casa de Eduardo Ribeiro, que homenageia o ex-governador do estado que ali viveu. O Teatro Amazonas, aliás, foi erguido durante sua gestão, de 1892 a 1896. Em 2009, um antigo quartel da polícia foi transformado no Palacete Provincial, onde estão instalados o Museu de Numismática e a Pinacoteca. Fala-se agora na implantação de um bonde elétrico para levar os turistas do Largo de São Sebastião até o Porto de Manaus.

É justamente essa região, a do porto, que mais carece de reformas. Ali a cidade nasceu, e hoje seus prédios centenários estão caindo aos pedaços e os camelôs tomam conta das ruas. Bom seria se a região toda fosse revitalizada, a exemplo das docas de Belém, no Pará, e Puerto Madero, em Buenos Aires.

Hoje Manaus recebe muitos turistas de negócios graças à zona franca. Antes voltada à importação de produtos e componentes que eram montados na região, agora abriga cerca de 500 empresas que, juntas, faturam mais de R$ 60 bilhões ao ano. Mas não espere encontrar aquela área de comércio com produtos importados baratíssimos. Gente pelas ruas carregando televisores, aparelhos de som e – parece que foi ontem – videocassetes é uma cena do Brasil Grande. A maioria daquelas lojas fechou ou migrou para o comércio popular. Mas, se você quiser ter um gosto de free shop em plena cidade, não precisa caminhar sob o sol equatorial para encontrar boas barganhas. Nos maiores shoppings da cidade, o Amazonas e o Manauara, há perfumes, computadores e câmeras bem em conta.

Manaus, que foi elevada a vila apenas no século 19 e experimentou o fausto do ciclo da borracha em 1900, decaiu para ressurgir com a zona franca, em 1967. E agora, nessa cidade que sempre renasce das cinzas (ainda que o mito da fênix não seja amazônico), o turismo parece ser a próxima saída. ‘‘Há muito o que fazer aqui”, disse-me o viajante inglês Julian. Ao ouvir isso, não pude esconder uma ponta de orgulho. Cresci em Manaus, perdi a conta das vezes em que vi o encontro do Negro com o Solimões. E sempre sinto um certo frisson ao passar pelo Teatro Amazonas. Entrando na adolescência, eu usava a desculpa de fazer pesquisas para a escola, a duas quadras dali, para passar horas admirando os detalhes do prédio. Que cada vez mais brasileiros – e estrangeiros – venham conhecer a minha cidade.

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A Manaus de Hatoum

“Minha cidade era muito linda”, disse à VT o escritor Milton Hatoum, manaura nascido em 1952 e que debutou com o romance Relato de um Certo Oriente, de 1989. O seguinte, Dois Irmãos, virou série de TV. Pelos seus livros é possível conhecer a Manaus do início do século 20 – a das histórias que seu avô lhe contava – até hoje. A seguir, a cidade em passagens de sua obra.

“A Marechal Deodoro [rua do centro, próxima ao porto] era um tumulto só: calçadas abarrotadas de camelôs e vendedores de frutas que batiam palmas, gritavam e avançavam sobre o DKW.” (Cinzas do Norte)

“Decidi fixar-me nessa cidade porque, ao ver de longe a cúpula do teatro, recordei-me de uma mesquita que jamais tinha visto, mas que constava nas histórias dos livros da infância.” (Relato de um Certo Oriente)

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“O aroma das frutas do sul vaporava, se colocadas ao lado do cupuaçu ou da graviola, frutas que exalavam um odor durante o dia, e um outro, mais intenso, mais doce, durante a noite.” (Relato de um Certo Oriente)

“Nos encontramos no fim de uma manhã ensolarada no Bosque da Ciência, um dos raros recantos em que Manaus se concilia com a natureza.” (A Cidade Ilhada)

“Lá fora, um dos barcos de bronze flutuava no centro da praça e as asas de um anjo submerso pareciam uma âncora solta no espaço.” (A Cidade Ilhada)

“O vigia pôde imaginar as cores e as formas da imensa pintura na cortina: garças e jaburus no meio de flores aquáticas e açucenas-brancas, uma naia deitada numa concha flutuando entre as águas do Negro e do Amazonas.” (A Cidade Ilhada)

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“Lembro de um grupo de turistas que queria ver índios. Eu disse: É só observar os moradores da cidade.”(Órfãos do Eldorado)

“Às vezes eu acompanhava passageiros estrangeiros a um passeio de canoa nos lagos próximos de Manaus; andava com eles pelo centro da cidade, eram loucos para conhecer o Teatro Amazonas, não entendiam como podia existir um colosso de arquitetura na selva.” (Órfãos do Eldorado)

Jungle Fever

Se você pretender aproveitar sua ida a Manaus para colocar os pés na Amazônia, uma boa pedida é ficar nos hotéis de selva. No Jungle Palace (Rio Negro, Enseada do Tatu, 40 minutos de lancha da cidade, 3658-8120, www.junglepalace.com.br; diárias desde R$ 700; Cc: A, D, M, V; Cd: todos) você só sabe que está no meio do mato quando olha pela janela. No quarto tem TV de LCD e cama box. Tradicional, o Ariaú Amazon Towers (Rio Negro, Lago Ariaú, 1h40 de lancha, 2121-5000, www.ariau.tur.br; diárias desde 946; Cc: A, D, M, V; Cd: todos) foi todo construído sobre palafitas, o que deixa você pertinho da copa das árvores. O Anavilhanas Jungle Lodge (acesso pelo km 1 da AM-352, 3365-1042, www.anavilhanaslodge.com; diárias desde R$ 600; Cc: D, M, V; Cd: todos) é menor – tem só 16 suítes – e fica próximo ao belo Arquipélago de Anavilhanas. Com piscina natural, o Amazon Ecopark Lodge (Igarapé do Tarumã-Açu, 20 minutos de lancha, 3622-2612, www.amazonecopark.com.br; diárias desde R$ 750; Cc: D, M, V; Cd: todos) conta com praia privativa durante os meses de seca. Uma das coisas bacanas do Amazon Riverside (Rio Amazonas, 2h30 de lancha, 3622-2788, www.mainan.com.br; diárias desde R$ 617; Cc: D, M, V; Cd: todos) é que ele está às margens do Rio Amazonas. Assim, tanto na ida quanto na volta para Manaus, você passa pelo encontro das águas.

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