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Rio, uma epifania

Rio de Janeiro, abençoado por Deus, bonito por natureza, foi feito pra nós. CAMILLA MOTA bebeu chope, entrou no mar, passeou na Dias e visitou UPP

Por Camilla Mota
Atualizado em 16 dez 2016, 09h11 - Publicado em 15 set 2011, 20h02

Moradora de Botafogo, a bióloga Sula Salani achou estranho o anoitecer daquele sábado 27 de novembro. Do janelão de sua sala não viu ninguém subindo ou descendo a movimentada Voluntários da Pátria. A rua em que vive e os quarteirões próximos são tão cheios de barzinhos com mesas na calçada e de casas que avançam pela madrugada tocando samba, indie e rock que valeram ao lugar o apelido de Baixo Botafogo. Naquela noite de sábado não só o Baixo Botafogo mas todo o Rio de Janeiro estava com cara de manhã de domingo.

Os cariocas ficaram em casa. Fazia seis dias, afinal, que o Rio protagonizava noticiários Brasil e mundo afora em razão de sua violência. Nenhuma novidade aí. A particularidade era a onda infernal de queima de carros em represália à ocupação de bases da bandidagem pela polícia. Poucos se aventuraram a sair, mesmo os acostumados a conviver com a violência explícita da cidade.

Ao ver tantas carcaças de ônibus e vans ardendo pelas ruas, quem dissesse que o Rio logo se tornaria um lugar tranquilo e desfrutável seria chamado de lunático. Mas, no dia seguinte ao sábado modorrento, uma megaoperação policial afastou traficantes do Morro do Cruzeiro e do Complexo do Alemão e devolveu ao carioca e ao visitante a segurança de caminhar por aí. Em menos de um mês, o Rio deixou de ser cidade fantasma para virar formigueiro humano. As pessoas voltaram às ruas, e não apenas em Botafogo. O Réveillon, que em novembro se anunciava um flop, bombou. Foram 640 mil turistas, 3% a mais que na festa do ano anterior. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis seção Rio de Janeiro (Abih-RJ), a taxa de ocupação dos hotéis cariocas bateu nos 98%.

A investida contra o tráfico devolveu ao carioca a autoestima e a crença de que é possível superar a violência crônica do Rio. E aguçou em todo habitante o orgulho de viver na cidade mais bonita do Brasil, uma das mais belas do mundo. E não adianta muito paulistas, soteropolitanos, catarinenses ou seja lá quem for invocar um certo subjetivismo nessa afirmação. Ao Rio, com aqueles cenários de baía, praias, montanhas, lagoa, floresta, mirantes, pedras, Burle Marx, botecos, samba, sol, biquínis, palmeiras-imperiais, Cristo etc., só cabe mesmo dizer aos que não vivem ali ou raramente visitam o lugar: perdeu, parceiro.

Em janeiro deste ano, caminhei bastante pelas agradáveis calçadas do centro e da Zona Sul, ainda mais agradáveis agora que a fiação subterrânea deixou os oitis e chapéus de sol praticamente soberanos no espaço aéreo. Segui pelo calçadão de Copacabana ao Leblon, as areias repletas de biquínis sumários e sungas brancas, como nos bons tempos. Subi e desci os morros de Santa Teresa. E fui além. Tomei o elevador para o Morro do Cantagalo, em Copacabana, hoje base de uma Unidade de Polícia Pacificadora, a UPP, principal responsável pela diminuição do espaço dos pontos de tráfico de drogas no Rio. Passei pela Barra da Tijuca e rumei mais a oeste até a Praia de Grumari. Tomei táxi, ônibus, metrô e bondinho. Foram sete dias de muito sol e bom astral. Não vi ninguém sobressaltado, olhando desconfiado para os lados, agarrado à bolsa ou pensando duas vezes antes de atender ao celular no meio da rua. A cidade estava bem mais relaxada que das últimas vezes em que a visitei.

Se você não conhece o Rio, há grandes chances de, após a primeira visita, ficar meio abobalhado. E, como se precisasse de aditivos, a beleza opressiva do Rio não se encerra em si. Você já vai cantando um refrão de funk ou de bossa nova (mesmo se não chegar à cidade de avião), toma um picolé pensando em Nelson Rodrigues ou no Rodrigo Santoro, e mesmo simpatizando com o Vasco, torce para o celular do seu taxista tocar de novo os 15 segundos da introdução do hino do Flamengo.

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É bem difícil não gostar do Rio.

Receita para amar a cidade é conjugar esse clima com visitas a lugares estupendos como o Pão de Açúcar (ou o Morro da Urca, o primeiro estágio do bondinho) ou o Instituto Moreira Salles, na Gávea, ou o Museu Chácara do Céu, em Santa Teresa, com seus jardins, vistas espetaculares e todas aquelas gravuras e desenhos de Rugendas e Debret; é dedicar uma manhã à Praia de Ipanema ou, bem mais longe, do Recreio ou de Grumari; é fazer movidas pelos botecos do Leblon ou do centro; é pegar uma bicicleta no sistema de aluguel da Zona Sul e passear em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas ou pelo calçadão; é ir a um ensaio de escola de samba (ou ao próprio desfile); é comer um baião de dois na Feira de São Cristóvão. Se você fizer qualquer uma dessas coisas, ou se fizer muitas dessas coisas, certamente irá entender por que o lugar fascina tanto os estrangeiros – e os próprios cariocas.

O chef Claude Troisgros trocou Paris pelo Rio há 31 anos, mesmo tendo de deixar a França em tempos de nouvelle cuisine para enfrentar uma gastronomia da idade da pedra – melhor dizendo, da idade do creme de leite e da cebola refogada. Claude é fascinado pela beleza do Rio. “Gosto da natureza e dos lugares em que o lazer é fácil”, disse à VT. “Só no Rio eu consigo, em algumas horinhas de intervalo do trabalho, andar de bicicleta na Lagoa, tomar banho de mar e até praticar kitesurfe.” E isso porque ele tem quatro restaurantes e apresenta um programa de TV no canal GNT. Para o chef, o povo do Rio é outro bem da cidade. “O carrrioca é um cara bon vivant, alegre, que gosta de comer, de beber, de dançar. Tem tudo a ver comigo.” Há um ano no Rio, o centroavante uruguaio Sebastián “Loco” Abreu, do Botafogo e da seleção de seu país, também é só elogios ao carioca. “É amigo, caloroso, recebe bem e tem paciência para abraçar quem vem de fora.” Sobre o Rio, que ele diz “usar pouco” por ficar muito tempo concentrado para os jogos, “acha as praias ótimas e o clima estupendo”. Violência? “Nunca vi nada.”

É claro que todos esses elogios podem mudar num piscar de olhos. Basta a pessoa que os proferir ser vítima de uma ocorrência policial. E o Rio, com UPPs ou não, está bem longe de ser uma cidade com índices de criminalidade decentes. São Paulo, que anda no limite do que os sociólogos chamam de “violência endêmica”, tem números bem melhores em vítimas de homicídio per capita. Assaltos no Rio não são incomuns. Um leitor da VT já nos relatou ter sido roubado no centro do Rio, em 2002, mas “sem violência física”, quando seguia sugestão de um roteiro a pé. E um editor da revista só não foi extorquido por uma dupla de policiais na Linha Vermelha em uma noite de quinta-feira por ter duas crianças angelicais dormindo no banco de trás do carro.

O Rio, como se sabe, deve melhorar com os investimentos previstos para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Ainda que os Jogos Panamericanos de 2007 tenham deixado um legado bastante duvidoso, tudo indica que a expansão do metrô e os investimentos na região portuária vão melhorar a cidade. Se o cronograma até 2016 for cumprido, pode-se dizer que o Rio viverá seus 50 anos em cinco, para usar a velha expressão dos tempos JK. Na área central, deverá surgir uma alça de acesso rodoviário ao porto e, de quebra, a revitalização do Morro da Conceição, que guarda em suas construções seiscentistas uma parte da história do Rio. E a reforma do Píer Mauá, do porto propriamente dito, é mais que esperada. É cada vez maior o número de turistas que chegam ao Rio por ali, em cruzeiros. Até o fim da temporada, em abril, serão 255 atracações, 29 a mais que na estação passada.

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A hotelaria carioca, na média cara demais para o conforto baixo que entrega, também vai ganhar um upgrade. Vêm aí um ressuscitado Hotel Glória, agora sob as mãos do bilionário Eike Batista, um apaixonado pelo Rio, onde ele tem restaurante, navio de cruzeiro e negócios na área médica; o primeiro Grand Hyatt da cidade (e o segundo do Brasil), na Barra da Tijuca; e mais dois grandes hotéis da rede Windsor, ambos na Barra. Neste mês, em Copacabana, o cinco-estrelas Windsor Atlântica passa a funcionar full force no prédio de 39 andares do antigo Le Méridien (será que também voltará a famosa cascata de fogos do Réveillon?). Já o Pestana Rio Atlântica entra em reforma para ressurgir diferente no fim do ano. Para o secretário municipal de Turismo, Antônio Pedro Figueira de Mello, é possível que a cidade ultrapasse a meta de criar 7 mil leitos de hotelaria até 2016.

A implantação das UPPs pelo Rio permitiu que o turismo chegasse a um lugar antes vetado à atividade: o morro. Cantado em tantos sambas, com vistas matadoras, lugares como o Morro Santa Marta, em Botafogo, agora possibilitam esse contato com um Rio mais “autêntico”. O Santa, que recebeu a primeira UPP carioca, experimenta algum sucesso entre os turistas. Ali já é possível tomar cerveja gelada, curtir uma roda de samba, comer feijoada com vista para o Atlântico e para a Lagoa. O acesso é pela Rua São Clemente, onde vi pessoas com suas mochilinhas e garrafinhas d’água à procura do elevador que sobe aos cinco níveis do morro, inclusive à laje onde fica a estátua de bronze de Michael Jackson, inaugurada no ano passado – para quem não se lembra, foi no Santa Marta que o astro gravou o clipe de They Don’t Care About Us, em 1996.

Por alguns meses, até fevereiro, a quadra da Mocidade Unida do Santa Marta, escola que disputa a quarta divisão do Carnaval carioca, no pé do morro, ficou mais concorrida que a laje do Michael. As rodas de samba mensais do Spanta Neném, bloco carnavalesco surgido no bairro bacana do Leblon, reuniram a cada sábado do evento mil pessoas no lugar. Foi a mais perfeita definição de favela chique, o tal momento em que o asfalto encontra o morro – e dessa vez não em busca de tóxicos. O suplemento semanal Rio Show, do jornal O Globo, fez um roteiro, pequeno, é verdade, de bares e restaurantes nas comunidades agora protegidas pelas UPPs. No Santa Marta foram destacados o Bar do Zequinha, com seu frango à passarinho, e o Bar do João, junto à quadra, elogiado pela limpeza e pelo contrafilé com fritas a R$ 9.

Outra UPP muito “Zona Sul” é a do Cantagalo, em Ipanema, que hoje contabiliza 200 visitantes por dia. Da janela central de seu Mirante da Paz veem-se o Cristo Redentor, a Lagoa Rodrigo de Freitas, o mar de Ipanema, as Ilhas Cagarras e o Morro Dois Irmãos. A subida de 64 metros, antes vencida em 20 minutos pelos moradores da comunidade por uma escadaria apertadinha, dura agora 40 segundos no elevador localizado na estação General Osório do metrô. O elevador e a estrutura que o mantém, bastante extravagante, marcam a paisagem. A radialista Rita Santos, que vive no morro há 46 anos, acha que as duas torres em verde e azul não harmonizam com o entorno, mas reconhece sua utilidade: “Você consegue imaginar o sufoco que era para subir isso aqui todo dia?”

Rita é uma senhora baixinha, de lábios grossos e sorriso fácil. Ela caminhou a meu lado pacientemente por quase três horas no sobe e desce do morro. Mostrou-me os belos painéis assinados pelo grafiteiro Acme que narram parte da longa história da comunidade, que surgiu em 1907. Graças a ela entendi o que significava a expressão “pombos sem asas” do verso de um dos murais. Eram as “necessidades” dos moradores, que antigamente eram arremessadas morro abaixo embaladas em jornal. Rita apresentou-me a seus amigos e contou histórias cabeludas pré-UPP. Levou-me ao mirante localizado atrás de um Ciep, escola pública que era cartão de visita do primeiro governo Leonel Brizola, em um dos pontos mais altos do morro. À esquerda, a orla se descortinava depois do tapete de prédios e ruas simétricas de Ipanema. Do lado oposto, a Lagoa aparecia inteirinha, e os edifícios caríssimos de seu entorno ficavam muito próximos. Enquanto eu virava a cabeça para os dois lados simultaneamente, Rita me convidou para ver as Olimpíadas de seu “camarote”.

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De novo no asfalto, ao caminhar em Copacabana, lembrei-me do psicanalista e escritor Contardo Calligaris, que mora em São Paulo mas tem um apartamento de “fim de semana” no Rio, em São Conrado. Ele me disse ser aquela Copacabana um lugar sedutor. “Tem mar e praia e um calçadão enorme para quem quer fugir da areia.” O Rio, no fim das contas, talvez seja essa Copacabana numa escala ampliada, com a exuberância e seu próprio antídoto logo ao lado. São de Contardo as frases que eu talvez quisesse minhas para fechar esta reportagem. “Gosto do Rio porque é uma cidade que se justifica por si só. Quando digo que moro em São Paulo, as pessoas me perguntam: “Por quê?”

O belo Teatro Municipal volta à ribalta

Para usar uma expressão dantanho, alvíssaras: o Teatro Municipal (www.theatromunicipal.rj.gov.br) está novamente pronto. Reinaugurado em maio do ano passado depois de uma reforma de epopeia – de R$ 75 milhões e mais de dois anos -, ele retomou as atividades normais, inclusive as visitas guiadas, que voltaram apenas em janeiro deste ano. E esses passeios são uma delícia. Por rapidíssimos 60 minutos passa-se pelos salões, terraços, obras de arte recuperadas (o painel A Música, de Eliseu Visconti, que toma todo o teto do foyer do balcão nobre, impressiona). Antes do tour é exibido um vídeo, tão impactante quanto curto, sobre os 850 dias de trabalho duro da reforma do prédio. São muitas imagens e pouco verbo, O Quebra-Nozes de Tchaikovsky de fundo e o suor de arquitetos, pedreiros, artistas e de toda a equipe envolvida na grande restauração. Um perigo para os visitantes de choro fácil.

Pan, Copa e Olimpíadas. O que falta para o Rio decolar?

A Copa de 2014 – sim, é depois de amanhã – e as Olimpíadas de 2016 causam tremedeiras em quem se lembra do legado do Pan 2007: seu custo para o contribuinte. Mas o Rio despertou no embalo desses que são os maiores eventos do mundo. Novos hotéis vêm por aí e a Lagoa Rodrigo de Freitas está sendo despoluída. Junto com Copacabana, Aterro e Baía de Guanabara, a Lagoa forma um dos núcleos do Rio olímpico, que irá receber provas a céu aberto, como canoagem e vôlei de praia. As demais competições serão na Barra, local também da Vila Olímpica, Maracanã (que tem de reabrir em 2013) e em Deodoro, no subúrbio. O custo dos Jogos está em R$ 29 bilhões, mas o céu é o limite. O mineiro Bruno Campos, do escritório BCMF Arquitetos, que desenhou os edifícios dos jogos, diz que a grande distância entre os núcleos fomentará uma rede de transporte eficaz no Rio. A estrela disso é a expansão do metrô até a Barra.

Última chamada para o maior espetáculo da Terra

Vai ao Rio neste Carnaval e não garantiu seu lugar na Sapucaí? What a pity. Agora ingresso só com cambistas ou comprando uma fantasia por não menos de R$ 650 (o Hélcio, 21/2576-6794, vende “posições” na Imperatriz Leopoldinense, na Portela e na Mocidade Alegre). Mas, sorria!, você está na cidade que agora também promove um dos melhores carnavais de rua do mundo – e o custo para participar dele é zero. O “consultor” Andre Skowronski, do site www.brazilcarnival.com.br, recomenda os blocos tradicionais, como o Cordão da Bola Preta e a Banda de Ipanema, ainda que, em suas palavras, eles estejam “cheios de gringos”. Se você tem um xenófobo adormecido dentro de si, fique então com o Cordão do Boitatá e a Orquestra Voadora (que saem no centro), Imprensa Que Eu Gamo e Bloco da Ansiedade (Laranjeiras), Mulheres de Chico (Leblon), Simpatia É Quase Amor (Ipanema) e Carmelitas (Santa Teresa). Mais em www.rioguiaoficial.com.

Para lá da Barra, um Rio que nem todos conhecem

A 40 quilômetros do centro, depois do Recreio, na Zona Oeste, Guaratiba é uma das esticadas bacanas do Rio. Foi nesse bairro que o paisagista Roberto Burle Marx, o homem que projetou os famosos jardins do Aterro do Flamengo, viveu de 1973 até 1994, ano de sua morte. Seu sítio (www.sitioburlemarx.blogspot.com), de 365 mil metros quadrados, pode ser conhecido em visita guiada. Ela dura 1h30, e você vai achar pouco. São 2 quilômetros entre lindos jardins e ateliês. Ao sair, experimente as moquecas do Bira (www.biradeguaratiba.com.br), com suas mesas voltadas para a Restinga de Marambaia. Na região ficam ainda duas belas praias: Grumari, cercada por morros com vegetação de restinga, e Prainha, de mar limpo, ondas fortes e Mata Atlântica. Na volta, pare na Casa do Pontal (www.museucasadopontal.com.br), no Recreio, o maior acervo de arte popular do país.

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Rio, uma epifania – Onde o Rio é mais Sertão

Rio, uma epifania – Miniguia VT

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