Imagem Blog Achados Adriana Setti escolheu uma ilha no Mediterrâneo como porto seguro, simplificou sua vida para ficar mais “portátil” e está sempre pronta para passar vários meses viajando. Aqui, ela relata suas descobertas e roubadas
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De Mendoza a Santiago de carro

Entre a Argentina e o Chile, uma estrada fascinante e com curvas fechadíssimas

Por Adriana Setti
Atualizado em 11 set 2017, 19h29 - Publicado em 5 jun 2008, 12h06

Para ir de Mendoza a Santiago, a capital do Chile, há duas opções: com emoção e com muita emoção. Com a bravura dos que não sabem muito bem onde estão se metendo, escolhemos a segunda opção. E lá fomos nós em direção à rota 52, mais conhecida como estrada de Villavicencio. Logo que o concreto ainda em construção do acesso norte da cidade termina, uma placa aterrorizante dá uma idéia do que está por vir. Resumidamente, o aviso diz que a manutenção da estrada é nula no inverno (quando seguir por ali no meio da neve é atestado de insanidade mental) e precária no verão. O letreiro diz, ainda, que a sinalização é inexistente, que desmoronamentos podem acontecer sem aviso prévio e que se você se der mal, o Estado não se responsabiliza por salvar a sua pele.
Como meu irmão havia feito o mesmo trajeto no ano passado, e sobreviveu para contar que era imperdível, decidimos ignorar o perigo em nome de uma vista única e praticamente intocada pela mão do homem na subida dos Andes. Para quem tem medo de altura (como eu), o caminho é uma provação. Mesmo assim, por mais absurdo que pareça, ainda acho que vale a pena.
A estrada de terra pedregosa tem 360 curvas, algumas fechadíssimas. Além disso, é tão estreita que, em certos pontos, só há espaço para um carro. E para tornar tudo mais emocionante, não há um único metro de guardrail separando estrada e penhascos de até 3200 metros de altura. Ou seja, a velocidade máxima deve ser proporcional ao seu amor à vida, o que no nosso caso significou algo como 15 por hora.
Nos primeiros quilômetros, um início de pavor ameaçou estragar o meu passeio. Minhas mãos e pés estavam frios e úmidos como um sapo. Quase não conseguia apreciar a paisagem, mantendo os olhos em direção à terra firme onde só há cactos, pouquíssima vegetação rasteira e um ou outro burrico pastando. Mais adiante, entrei em uma espécie de transe. O medo passou e a paisagem tão diferente de tudo o que já tinha visto fez com que eu tivesse a sensação de estar em outro mundo.
O ponto alto do percurso, nos dois sentidos (3200 metros) é a Cruz de Paramillos, de onde se pode ver todo o vale de Villavicencio. É, principalmente, a primeira vez que ELE aparece: o pico do Aconcagua, de 6962 metros de altitude, o “teto da América”. A visão é mágica: montanhas e mais montanhas, aridez total, céu azul e picos nevados. Inesquecível.
Alguns quilômetros adiante, a estrada finalmente desemboca na cidadezinha de Uspallata, onde foi rodado o filme Sete Anos no Tibet, com o bonitão Brad Pitt. É lá, também, que chega a rota 7, impecavelmente asfaltada – menos emocionante, mas também muito bonita – que sai de Mendoza pelo acesso oeste e passa pelo vilarejo de Potrerillos, à beira de um dique azul, nos pés da cordilheira. Uspallata é um oásis verde no meio da secura agressiva da montanha, e serve de último pit stop antes de cruzar os Andes em direção a Santiago. Abastecer o tanque e os estômagos é fundamental, já que o próximo posto de gasolina só aparece duzentos quilômetros mais adiante, quase na capital chilena (detalhe peculiar: a gauchada também pode aproveitar para encher a cuia de chimarrão na máquina de água fervendo).
Já na segurança do asfalto da rota 7, a próxima parada é a entrada do parque do Aconcagua, onde está o cemitério dos andinistas (como são chamados os alpinistas dos Andes, por motivos óbvios) menos afortunados, a Puente del Inca – uma formação natural resultante das águas termais ricas em ferro – e uma feirinha de produtos artesanais e pedras da região. O vilarejo é o ponto de partida para trekkings que passam pelo lago Horcones e chegam até um mirante de onde se vê a rota da parede sul, por onde seguem os valentes rumo ao topo. Passando a entrada do parque, seguindo pela rota 7, chega o momento corta-barato da viagem, a fronteira como Chile, conhecida como Paso de los Libertadores.
A demora para fazer os trâmites são dignas de fronteira México-Estados Unidos. Brasileiros não precisam de visto para entrar, só o passaporte ou Carteira de Identidade com data de emissão de menos de dez anos (ou seja, aquela com a foto de moletom do Mickey e maria-chiquinha não vale, atenção!!). Quem vai de carro emprestado (como no nosso caso), precisa de uma autorização legalizada no consulado. Mesmo se o carro for da sua mãe! Reza a lenda, que alguns policiais também podem exigir a Carteira Internacional (ainda que não haja uma lei que exija isso de brasileiros, segundo o consulado me informou). Mas ao sermos parados na estrada, mostramos a carteira internacional e recebi um “que es eso?” como resposta.
A seguir, começa um vai e vem de papéis que dura, em média, uma hora. Primeiro, a burocracia para SAIR da Argentina. E depois a chatice para ENTRAR no Chile. Um policial entrega um papel, o outro pede o papel, o outro carimba o papel, um dá, outro pede, mais um carimba… Tenha tudo em mãos. Também é preciso ter pesos chilenos para pagar um pedágio (há uma casa de câmbio no local). E quando tudo parece ter terminado, um cachorro entra no carro em busca de coisas que você não deve ter de jeito nenhum.
Passada essa aporrinhação, a emoção volta a reinar. Na descida dos Andes em direção a Santiago, a estrada é conhecida como “Los Caracoles”, devido à quantidade de curvas impossíveis que, para completar, estão repletas de caminhões que desafiam a gravidade com freios que preferimos não saber em que estado se encontram (há algumas pistas de emergência nas tangentes de algumas curvas para os que acabam vindo em desabalada carreira). As montanhas, nessa região, são escuras e totalmente secas, o que faz com que contrastem ainda mais com os picos nevados e o azul do céu. Quando a descida acaba, tudo muda radicalmente. Em poucos quilômetros, surgem vinhedos e mais vinhedos, e uma sensação de vitória, por ter vencido aquela montanha monstruosa que começa a ficar distante.