Imagem Blog Achados Adriana Setti escolheu uma ilha no Mediterrâneo como porto seguro, simplificou sua vida para ficar mais “portátil” e está sempre pronta para passar vários meses viajando. Aqui, ela relata suas descobertas e roubadas
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Padecendo no paraíso: relato de uma roubada na Veneza alagada

Por Adriana Setti
Atualizado em 27 fev 2017, 15h45 - Publicado em 13 nov 2012, 07h10

Momento “nóis sofre mas nóis goza” na Piazza San Marco alagada (foto reproduzida do blog Navigatore Curioso)

 

 

 

 

 

ôôô delícia…. carregar a mala com a água pela cintura não tem preço (sente a expressão de desgosto da moça) — (foto reproduzida de style.it)

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Enquanto escrevo estas linhas, o aguaceiro em Veneza atinge a marca de 1,50m acima do nível do mar, inundando a Piazza San Marco e grande parte da cidade. Chorando de rir da cena do mochileiro desabando (clique aqui para ver o vídeo) em meio ao aguaceiro, captada pela BBC, me lembrei de um texto hilário do meu irmão Daniel Setti. Tadinho, a ideia foi minha: sugeri que ele fosse a Veneza na pior roubada do mundo para sentir na pele como é estar lá durante a malfadada Acqua Alta. Naquele ano, ela havia batido recordes. A matéria foi publicada em um especial Itália da VT, em 2009. E aqui está o texto, na íntegra:

Vestido para a ocasião (foto reproduzida de sentio.it)

 

Veneza é romântica até embaixo d’água, mas acho que o noivo não está curtindo (foto reproduzida de nypost.com)

 

“Qual o tamanho do seu pé?”. Essa foi primeira frase que ouvi de meu anfitrião, Elias, um simpático veneziano grisalho em seus quarenta e tantos anos. Meu estado só não foi de perplexidade completa diante da pergunta inusitada porque, justamente naquela fria e úmida semana de dezembro, as manchetes do mundo inteiro alardeavam notícias sobre a temida Acqua Alta, recém-ocorrida. Então imaginei o elegante Elias e seu imaculado sobretudo metidos em espalhafatosas galochas. E, em seguida, tentei calcular, preocupado, se meus pés (enormes) caberiam dentro de um par delas. Glup.

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No início daquele mês, às vésperas do inverno europeu, a altura da água pelas ruas de Veneza havia batido um recorde de mais de duas décadas – atingira 1,56 metros – inundando boa parte de seus cartões-postais, inviabilizando serviços de transporte e colocando em xeque a gorda galinha dos ovos de ouro do turismo. “Só venham se for mesmo imprescindível”, dissera o prefeito Massimo Cacciari, tentando frear a manada que ignora obstáculos, sejam eles sólidos ou líquidos, para conhecer de perto os encantos da segunda cidade mais concorrida da Itália, depois de Roma.

 

Como viajar, para mim, é sempre um fato imprescindível, engoli em seco diante da possibilidade de caminhar com água acima da cintura sob um frio de 0 graus ou, na melhor das hipóteses, pagar o mico de chafurdar por ruelas e praças. Enquanto atravessávamos o Gran Canale pela novíssima em folha ponte do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, Elias foi gentil e tentou me tranquilizar, argumentando que em Veneza sabe-se exatamente a que horas do dia ocorrerá a Acqua Alta. Tal capacidade de previsão ajuda seus moradores e visitantes a driblarem o que pode ser a roubada do século para os desavisados.

 

Galocha: objeto do desejo (foto reproduzida de sentio.it)

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“No dia em que a água subiu, meus filhos foram para a escola às 8 horas da manhã e voltaram normalmente à tarde. A Acqua Alta aconteceu exatamente às 11 e se dissipou pouco depois”, contou animado, entre um ou outro comentário futebolístico. A farsa duraria por alguns minutos, quando eu tremeria ao ver as marcas de água em latitudes assustadoras das paredes das casas, mostradas por um controlado Elias.

 

Mesmo com chuva sobre a cabeça – e assombrosas imagens de alagamento passando como um filme dentro dela – Veneza é agressivamente bela. Blindado com sapato e casaco impermeáveis, guarda-chuva (cuja procedência chinesa eu ainda lamentaria mais tarde), parti para uma longa caminhada.

 

É certo que o aguaceiro espantou uma porcentagem considerável de turistas (tudo nessa vida tem seu lado bom). Mas eles ainda estavam lá, mais identificáveis do que nunca, com suas capas de chuva amarelas, chapéus redondos e… galochas recomendadas na última hora pelos donos dos hotéis como itens fundamentais para a sobrevivência. Reluzentes e multicoloridas, elas deixavam suas pegadas na Praça San Marco e na basílica, ainda transitáveis apesar da chuva.

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O cenário não era de acqua alta, embora as ondas já estivessem a milímetros de invadir os canales que flertam com o mar aberto. Mas o barman do simpático Maiiardi Enobar, por exemplo, se preparava para colocar as cadeiras sobre o balcão, “por precaução”, após ter se surpreendido com 40 cm de água a mais que o esperado no interior de seu estabelecimento. O bar foi obrigado a fechar por três dias. “Botas não foram suficientes”, lamentou. O turismo, porém, seguia fluindo com a ajuda das passarelas posicionadas pela prefeitura em alguns pontos mais críticos.

 

De repente, por volta das 18 horas, ouvi as 16 sirenes usadas para avisar da eminente enchente. Elas são usado há décadas – Veneza alaga catastroficamente desde, no mínimo, o século XIII, quase sempre entre novembro e abril – , acionadas horas antes da enxurrada prevista. Para um visitante de primeira viagem, soam um tanto quanto assustadoras. Sobretudo quando o dado de que a cidade afundou algo entre 20 e 60 centímetros  no último século está gravado na memória.

 

OK, sair naquela noite já não era mais recomendável – comprovei ao chegar a dois becos do apartamento onde estava hospedado e concluir que estava cercado por enormes poças por todos os lados. Foi o momento de dar uma passada estratégica no supermercado para comprar alguma comida e um belíssimo vinho nacional. Aberta a garrafa, o objetivo passou a ser tentar esquecer que, segundo as estimativas, dali a pouco, às 23 horas, a água atingiria 130 cm, e 25 centímetros a mais na manhã seguinte.

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Acordei. Meu vôo estava marcado para as 17 horas. Aproximadamente cinco horas antes, encharcado pela água que caía grossa e que o ponto de ônibus descoberto não aliviava em uma gota, cansei. Olhei ao redor e, diante das poças que naquele instante, davam uma trégua milagrosa, rumei para o aeroporto. Meu guarda-chuva já ganhara o aspecto de uma ossada de morcego molhada. Eu era um fugitivo da Acqua Alta.

 

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